E pensar que há uma semana Portugal era um lugar desenhado num mapa.
Quantas coisas podem mudar numa semana?
Um oceano inteiro.
Não estou a usar essa palavra assim, ao acaso, porque a maioria dos meus dias em Portugal começavam, continuavam e terminavam à beira do oceano.
Esse argumento precisa duma premissa: eu detesto o mar e a praia. Nada de radical chic ou de anticonformista típico daquele conjunto de artistas que se quer destacar das massas, simplesmente: não sei nadar e consigo queimar-me ao sol com uma facilidade impressionante.
Por conseguinte, ir à praia, ou seja a um lugar que tem areia, água e sol, com certeza não é um “idílio” por mim.
Mas pronto, enquanto já me tinha resignado a considerar as minhas viagens para o “posto de trabalho” como um mal necessário, eis que o oceano me tocou no coração e me destabilizou.
Viu-o o primeiro dia e foi como pousar os olhos numa mulher linda, e tu sabes ela ser inacessível mas que, de qualquer maneira, não podes parar de a contemplar admirado. E dia trás dia vais à procura dela, logo a encontras e a admiras, mas sem ter a coragem de te aproximar, nem que seja só para dizer um “olá”.
Quem diria que eu, homem de “terras”, ia acabar por me apaixonar pelo oceano?
Aqui vai mais uma piada: vocês sabem qual é a língua que se fala em Portugal? Exatamente, é o português. Vocês sabem que eu não sei falar?
E eu obviamente não tinha pensado em atravessar 3 países mais uma hora de fuso horário longe da Itália só para ver o oceano!
Amo as coisas simples, por isso aceitei o convite do Renzo de Assemblea Teatro e fui fazer magias na Festa da Sardinha em Lavra!
O que é que vocês acham dum feiticeiro que nem sabe dizer “escolha uma carta” numa língua compreensível aos residentes?
Eis que então, na noite antes de começar, cheio de inconsciência pedi para que me ensinassem algumas palavras necessárias para a minha sobrevivência: “escolha” “vire” “em cima” “debaixo” (estas últimas foram prontamente esquecidas na manhã seguinte), os números até dez, os naipes e os valores das cartas.
E com todo esse domínio da língua, no dia seguinte, estive a saltar de um restaurante para outro com cartas, cordas, bolas e bonecos esquisitos.
Acham que correu bem?
Correu sim, porque em Portugal o pessoal ainda sabe ficar admirado com a magia. Nunca, nem uma vez, o pessoal me ignorou, ou fugiu, contrariamente ao que acontece muitas vezes em Itália, onde cada tentativa de aproximação passa a ser considerada uma tentativa de roubo, fraude, ou quem sabe mais o que!
Ninguém me desafiou para eu “fazer um jogo” simplesmente para ver se o feiticeiro podia ser suficientemente desajeitado para deixar ver o truque.
O fumo das brasas – cujo cheiro tem o poder de ficar colado na roupa com uma tenacidade lendaria – alimentava a vontade dos portugueses de ficar admirados e de brincar, e levava estes sentimentos para o alto, eternamente soprados pelo vento, até o oceano.
Claro que há um truque, mas o pessoal daqui aceitou o fato de intercambiar o incompreensível com a maravilha e por isso já não é preciso falar outra língua específica para oferecer um sorriso. As crianças cumprimentavam-me e reconhecendo-me desde longe gritavam: “O mágico!” e, apenas um dia antes de eu ir embora, enquanto entrava nos restaurantes para agradecer e despedir-me do pessoal, um velho senhor sentado num bar sorriu e imitou um dos meu gestos que costumava fazer durante os espectáculos .
Ainda não sei falar português, mas há coisas pelas quais se deixam de lado as diferencias de língua, cultura e o resto, e voltamos a ser simplesmente seres humanos.
Há outras coisas pelas quais nos esquecemos de anos e anos de estudos e de vida civil para nos deixar levar e fazer tanta festa que em comparação a selva é um lugar silencioso.
Também isso é algo próprio do ser humano, sem alguma distinção, mas vamos com ordem:
durante a semana Portugal ganhou a semifinal e mais tarde a final do campeonato europeu de futebol. A Itália não fez uma tão “boa impressão” nos quartos-de-final, e voltou para casa antes da meia-noite…só para constar.
O dia da final era também o meu último dia de trabalho e os organizadores da festa – que por sorte falavam também inglés – convidaram-me para ver o jogo no Rancho das Sargaseiras, o centro onde costuma reunir-se a histórica associação de danças populares do país.
Não gosto muito de futebol (sim, eu sei, sou uma pessoa chata: não gosto do mar, nem de futebol…) mas enquanto o jogo estava a dar, eu fiquei a observar a gente. Paul Ekman dizia que existem expressões comuns entre todos os seres humanos. Da mesma forma, eu acredito que existam as paixões. Uma destas é o futebol.
Desde os Alpes até as Pirâmides, desde o Manzanares ao Reno, se uma bola entrar na baliza todo mundo levanta-se, exulta com jóia e abraça a primeira pessoa que estiver mais próxima.
E mais ainda, se a entrada daquela bola na baliza significar “agora vocês são campeões da Europa”, com certeza é que vai haver festa!
E então todo mundo a buzinar na rua, carros conduzidos pelo pessoal pronto para trangredir qualquer regra de boa condução, tratores trasbordantes de homens e mulheres em festa, desperdiçando litros e litros de gasolina dando gás só para fazer barulho, porque o que já estão a ouvir não chega, fogos de artifício e muita alegria.
Próximo objectivo: conseguir ter a mesma recepção caso eu volte.
Está combinado. Mas continuamos.
Acabada festa, após ter arrumado as bolas, as cordas e posto as cartas na mala (o meu vocabulário está a crescer cada dia mais), as surpresas ainda não acabaram.
E eis que estou aqui no Porto, cidade que fica entre mais de sete morros. Sempre se tem que subir, até quando se está a descer.
Casas estreitas, encostadas uma à outra como livros numa livraria e, como um livro, contêm historias que ninguém chega a conhecer até abrir a capa.
Eu entrei num destes livros, à noite.
Quero fazer um esclarecimento: não sou pessoa de assaltar casas para chegar ao final do mês, embora possa parecer pelo que acabei de escrever agora.
Simplesmente, fui para um local histórico do Porto, o Pinguim Café, onde todas as segundas à noite acontece algo muito especial.
Ultrapassando o balcão, se tem que descer escadas. Na cave, costuma reunir-se um grupo de pessoas – quase um novo Grupo de Poetas Extintos – que, conduzidos pelos Rui (um é um ator e o outro é músico, os dois compartilham o mesmo nome), todas as noites lê poemas em voz alta.
Fumo das brasas antes, fumo de cigarros depois: a minha vida em Portugal foi marcada pela neblina.
Eu também li, mas não vou dizer quais poemas, e foi bom observar desde fora assim tantas pessoas e tantos jovens a partilhar o amor pela noite e pela poesia.
Desde fora? Mas não tinha entrado?
Se na magia a admiração é dada pelo efeito, na poesia é dada pelas pessoas. E não é fácil obtê-la quando não se faz a mínima ideia daquilo que os outros estão a dizer.
Podes ouvir o riso deles, aplaudir, repetir frases que já conheces, mas tu não podes participar e isso não tem nada de mal, mas é inevitável se distanciar um pouco e pensar. Se eu, que fui recebido maravilhosamente, senti aquela sensação de exclusão, quem sabe o que dever sentir cada dia uma pessoa que vive às margens da sociedade, alguém que talvez tenha um universo para contar, mas ninguém está disposto a ouvi-lo.
E então, enquanto estou a observar a minha bagagem desde diferentes perspectivas, tentando de a tornar o mais possível semelhante àquela que tinha quando cheguei aqui, enquanto me estou a preparar para o último pôr-do-sol no oceano, pergunto-me, e quero fazer a mesma pergunta para vocês: o que é preciso fazer, a partir de amanhã, para começar a ouvir realmente a vida ao nosso redor?
Stefano Cavanna